Quando nosso sistema imunológico enlouquece, entram em cena as doenças autoimunes - transformando suas vítimas em pessoas "alérgicas" a elas mesmas.
por Texto Maurício Manuel
ELA SE DISFARÇA DE OUTRAS DOENÇAS
Quem é fã da série House já viu a equipe do médico, em mais de um episódio, apostar no diagnóstico de lúpus por não fazer a menor ideia de qual seria a explicação para o caso de um paciente. Na vida real, isso também acontece. E o motivo é simples: quase tudo pode ser atribuído a essa doença autoimune, uma das mais misteriosas de que se tem notícia.
O lúpus eritematoso sistêmico, como é chamado pelos cientistas, tem potencial para afetar qualquer parte do corpo. É por isso que os médicos acabam confundindo seus sintomas com os de outras doenças. Trata-se de uma enfermidade inflamatória: o sistema imunológico do doente fica doido e produz anticorpos que atacam sem piedade células e tecidos de seus próprios órgãos, provocando a inflamação. Em situações mais graves e raras (menos de 1% dos casos), o mal pode levar a alucinações e comportamentos psicóticos. A evolução da doença é imprevisível, com períodos de sofrimento e melhoria se alternando constantemente. Não há cura. Resta ao doente, portanto, remediar os sintomas e encontrar a melhor forma possível de conviver com eles.
Embora seja conhecido desde a Idade Média, o lúpus permanece cercado de enigmas. Sabe-se, por exemplo, que 90% das vítimas são mulheres, e que 80% delas desenvolvem a doença na fase mais produtiva da vida, entre os 15 e os 45 anos. Por quê? A ciência ainda não encontrou a resposta. Outro mistério: nos EUA, onde as pesquisas sobre a moléstia são as mais avançadas, a incidência é muito maior em populações com características étnicas específicas, como negros e descendentes de asiáticos. Em outras partes do mundo, porém, não há dados que indiquem maior vulnerabilidade deste ou daquele grupo. "Em quase 20 anos de acompanhamento de casos, não conseguimos comprovar, aqui, as mesmas estatísticas verificadas pelos americanos", afirma Ricardo Machado Xavier, coordenador do Grupo de Estudos sobre Lúpus da UFRGS.
Os cientistas acreditam que a doença tenha um componente genético em sua origem, já que é comum o registro de múltiplos casos dentro de uma mesma família. O problema é que não se sabe ao certo qual gene seria o responsável. Tudo leva a crer que não apenas um mas vários genes sejam capazes de determinar maior ou menor risco de uma pessoa desenvolver lúpus, mediante a influência de "gatilhos" como a ingestão de certos medicamentos (antidepressivos, antibióticos e diuréticos), estresse e exposição ao sol.
Prontuário
Incidência - Entre 30 e 100 ocorrências para cada grupo de 100 mil indivíduos.
Total de casos - 5 milhões no mundo todo.
Mortalidade - 5% nos primeiros 5 anos da doença, por causa de complicações decorrentes de processos infecciosos.
Tratamento - Medicamentos imunossupressores entre os surtos. Exames de sangue em intervalos de 3 a 10 semanas tentam antecipar problemas graves.
Esclerose múltipla
NERVOSA, CRUEL E ENIGMÁTICA
O cérebro ordena que o corpo relaxe, mas ele não obedece, submetendo seu dono a tremores involuntários. Ou, quando obedece, o faz de maneira totalmente desordenada. É mais ou menos assim que a esclerose múltipla começa a se manifestar. Na origem da doença também está uma reação autoimune: produção de anticorpos que atacam as chamadas bainhas de mielina, responsáveis por levar os impulsos nervosos de um neurônio para outro. Por que o sistema imunológico faz isso? Ninguém sabe responder.
Prontuário
Incidência - 5 a 130 ocorrências para cada grupo de 100 mil indivíduos.
Total de casos - 2,5 milhões no mundo todo.
Impacto - Após 20 anos, 30% das vítimas estão em cadeira de rodas.
Tratamento - Fisioterapia e medicamentos imunossupressores.
Prontuário
Incidência - Entre 5 e 50 ocorrências para cada grupo de 100 mil indivíduos.
Total de casos - 480 mil conhecidos.
Impacto - Após 15 anos do diagóstico, 50% das vítimas apresentam alguma deficiência visual.
Tratamento - Injeções diárias de insulina e dieta.
Engana-se quem pensa que lacrimejar é coisa de gente sensível. Todo dia, produzimos naturalmente cerca de 15 mil lágrimas, uma a cada piscada de olhos. Mas há exceções - entre elas, as vítimas de um mal conhecido como síndrome de Sjögren. Essa moléstia provoca inflamações das glândulas exócrinas (órgãos geralmente minúsculos espalhados por várias partes do corpo e que produzem diferentes secreções). Ou seja: a redução da capacidade de lacrimejar é apenas um de seus sintomas, o mais perceptível. A síndrome também leva sua vítima a produzir menos saliva, além de comprometer a produção de suco gástrico - que ajuda na digestão dos alimentos - no estômago.
Como acontece em todas as outras doenças autoimunes, são os anticorpos do próprio doente que atacam as glândulas. Mas as razões que levam a esse ataque ainda são desconhecidas. E esse não é o único enigma envolvendo a síndrome. Estima-se que 9 entre 10 pacientes diagnosticados sejam mulheres - e, estranhamente, jamais foi constatada qualquer relação entre a desordem e questões hormonais. Aproximadamente metade dos casos é considerada secundária - associada a outras doenças autoimunes, como artrite reumatoide e lúpus.
A maior parte dos pacientes procura o oftalmologista por volta dos 40 anos, com sensação de areia nos olhos resultante da má lubrificação. Como se trata de um sintoma comum a muitas patologias oculares, a última coisa que passa pela cabeça do médico é a possibilidade de autoimunidade. Uma pesquisa feita pela Fundação da Síndrome de Sjögren, nos EUA, comprova a dificuldade na hora do diagnóstico. Segundo o estudo, passam-se em média 6 anos entre a manifestação dos primeiros sintomas e a identificação da doença. "Enquanto isso, o sofrimento é grande", afirma Milton Alvez, chefe do Serviço de Córnea e Doenças Externas do Hospital das Clínicas de São Paulo. "O ardor nos olhos pode incomodar o paciente mais de 200 dias por ano, a ponto de comprometer seu desempenho no trabalho e a vida pessoal."
Prontuário
Incidência - 2 ocorrências para cada grupo de 1 000 pessoas.
Total de casos - Desconhecido (cerca de 4 milhões só nos EUA).
Impacto - Desconforto contínuo nos olhos e incapacidade de chorar.
Tratamento - Uso de colírios e suplementos vitamínicos.
Prontuário
Incidência - 1% da população mundial.
Total de casos - 70 milhões no mundo todo.
Impacto - A doença pode levar a hiper ou hipotireoidismo, anemia e inflamação dos olhos.
Tratamento - Corticoides, fototerapia e laser.
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Fonte: Texto / Superinteressante / maio 2010. Imagens / google imagens / junho 2013.
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