domingo, 3 de janeiro de 2016

TOXICOLOGIA: DROGAS - VIAGEM FATAL PELO CORPO HUMANO

Uma viagem das drogas pelo corpo humano



Nos órgãos em que fazem escala, elas sempre ameaçam criar confusão. Mas bagunça, para valer, é o que se nota, quando chegam ao cérebro.

                                                          Edição 54, Março de 1992




POR Redação Super
Lúcia Helena de Oliveira e Paulo Roberto Pepe. Colaborou Lúcia Camargo

As passageiras comuns vão aos portões de embarque da boca e das narinas.Mas algumas têm direito a um tratamento vip, embarcando mais rápido, direto na veia.

Uma vez acomodadas no sangue, as drogas iniciam a sua viagem pelo corpo humano. A circulação, propulsionada pela turbina do coração, é um transporte a jato, percorrendo cerca de 100 quilômetros de vasos, com conexões para toda parte. A eventual escala no fígado, porém, pode barrar parte das viajantes. Para essa víscera, com função de um policial de fronteira, as drogas não têm visto de entrada no organismo. Afinal, como qualquer substância tóxica, elas acabam causando muita destruição por onde passam. Mas, enquanto as células hepáticas fiscais prendem e liquidam algumas dessas moléculas criadoras de encrenca, a maioria das turistas baderneiras termina escapando e seguindo em frente — ou melhor, para o alto, em direção ao cérebro. E é ali que causam a maior confusão.

Trata-se, afinal de contas, de um órgão especialíssimo. Da dor de um beliscão à alegria de encontrar um amigo, da imagem de um rosto ao som de uma música, das recordações à imaginação, da fome de comida à sede de conhecimento — a pessoa só sente o que passa pelo cérebro. Para este, por sua vez, emoção, sensação ou razão, tudo é pura eletricidade. Pois suas células, os neurônios, se comunicam através de impulsos nervosos, que nada mais são do que correntes elétricas. Mas para que haja a transmissão de uma mensagem qualquer, é preciso que as células cerebrais secretem as chamadas substâncias neurotransmissoras. "Os neurônios nunca encostam um no outro" descreve o neurologista Esper Cavalheiro, da Escola Paulista de Medicina. "Os neurotransmissores, então, saltam de um neurônio para o outro, passando o impulso elétrico para a frente." A produção dessas substâncias, porém, tem de acontecer na dose exata — se faltam neurotransmissores, a mensagem nervosa se perde no meio do caminho; em compensação, em excesso, são capazes de fazer uma informação ficar reverberando. As drogas, no caso, alteram o comportamento de seus usuários, justamente porque suas moléculas, clandestinas no sistema nervoso, conseguem mexer no nível dos neurotransmissores.

Algumas fazem as substâncias mensageiras jorrar a tal ponto que os impulsos se multiplicam ou começam a trafegar mais depressa. Outras agem de modo inverso: fecham as torneiras dos neurotransmissores nos neurônios, que desse modo passam a trabalhar em câmera lenta. Finalmente, há também as farsantes, que se encaixam nos receptores das células cerebrais, fingindo trazer uma mensagem que, na realidade, não existe. É por isso que os especialistas costumam dividir os milhares de substâncias rotuladas como drogas em três grandes grupos: estimulantes, depressoras e alucinógenas. "Usando essas táticas, as drogas podem induzir todo tipo de sensação", diz Cavalheiro. "No entanto, muitas vezes fica difícil saber detalhes do que aprontam. Em primeiro lugar, porque seu campo de ação, o cérebro, ainda não é completamente conhecido pelos cientistas", admite o pesquisador. 

" Além disso a cada dia descobrimos novas funções para determinados neurotransmissores. Portanto, seguindo esse raciocínio, as drogas que interferem nessas substâncias podem provocar efeitos que, antes, não imaginávamos."Existem, contudo, rastros que permitem aos cientistas presumir ao menos parte do percurso das drogas. Ainda em meados dos anos 50, nos Estados Unidos, certos pesquisadores realizaram uma experiência que acabou se tornando clássica: eles implantaram eletrodos em áreas diferentes do cérebro de cobaias; assim, toda vez que os animais pisavam numa pequena plataforma, os eletrodos aplicavam um levíssimo choque. Em determinadas regiões cerebrais, esse estímulo elétrico parecia ser agradável, pois as cobaias passavam a repetir, cada vez com mais freqüência, as visitas a esse canto especial das gaiolas. Além disso, a tendência era ficarem ali mais tempo, perpetuando o estímulo. A partir daí, alguns cientistas começaram a suspeitar da existência do que chamariam centros de prazer, espalhados pelo sistema nervoso dos quais o mais sensível seria o hipotálamo, na base do cérebro. Certamente, em sua viagem, as drogas devem fazer escalas mais demoradas nessas regiões.

Tal como as cobaias da experiência americana os usuários de drogas também tendem a diminuir os intervalos entre as aplicações dessas substâncias. "É o fenômeno da tolerância: são necessárias quantidades cada vez maiores da substância para que ela produza o mesmíssimo efeito no organismo", define Elisaldo Carlini; professor de Psicofarmacologia na Escola Paulista de Medicina. Ele é, com certeza, uma das maiores autoridades brasileiras no estudo das drogas. Aos 61 anos, já publicou 189 trabalhos sobre o assunto.

Se as drogas, de fato, atuam principalmente nos tais centros de prazer e saciedade do sistema nervoso—uma teoria que ainda provoca controvérsia nos meios científicos—, a passagem delas por aí é traiçoeira. Isso porque, se logo no início despertam alguma sensação agradável para a pessoa, em seguida passam a fazer chantagem: o organismo passa a implorar sua presença. É o que se chama dependência: se antes alguém tomava a droga para sentir determinado efeito, depois é obrigado a tomá-la para seu corpo continuar funcionando direito — o "barato", como dizem os dependentes, já nem importa mais. Um organismo viciado em heroína, por exemplo, precisa da substância tanto quanto qualquer pessoa precisa de alimento. Interromper o consumo da droga é sofrer flagelos piores do que estar faminto, o que já faz, na maioria das vezes, qualquer um desistir da ideia de abandonar o vício. E, no caso, assim como se morre por inanição, insistir na interrupção do uso da heroína, sem acompanhamento médico, costuma ser fatal.

"O tormento físico relacionado ao abandono de qualquer droga é o que os especialistas conhecem por síndrome de abstinência. A da heroína só perde para a do álcool", revela Carlini. O fenômeno acontece, mais uma vez, porque as drogas desregulam o sistema nervoso. Por exemplo, as moléculas dos chamados narcóticos — produtos derivados do ópio, como a heroína — são extremamente parecidas com as de uma família de substâncias que os neurônios fabricam para controlar a dor física e moderar emoções como o medo e a angústia. Assim, além de servirem de anestésico, os narcóticos diminuem a ansiedade e induzem o sono. Mas o uso contínuo das substâncias opiáceas leva o cérebro a poupar suas energias, deixando de produzir os neurotransmissores com moléculas similares às das drogas.O álcool pode agir de maneira semelhante. "Mas para criar tamanha dependência é preciso que uma pessoa beba, com freqüência, tremendas quantidades de bebidas alcoólicas", diz Carlini, que absolve a ingestão cautelosa. 

"Doses moderadas de uísque, especificamente, podem até combater a hipertensão", exemplifica. O álcool é um depressor do funcionamento do sistema nervoso. O mais curioso, porém, é que ele parece agir em etapas, ao chegar ao cérebro. A primeira região a ser deprimida é aquela do comportamento voluntário, na superfície da víscera cinzenta, responsável por decisões do tipo "o que devo e o que não devo fazer". Ou seja, em um só golpe, o álcool derruba a autocensura. Depois de alguns goles, a pessoa passa a liberar pensamentos e emoções que estavam, de alguma maneira, bloqueados—pode, assim, falar mal da sogra, cair na gargalhada, soltar o choro, mostrar o cansaço do dia e adormecer em público.

O próximo passo do álcool no sistema nervoso é ir para as áreas encarregadas da concentração e da coordenação motora. Da mesma forma que a bebida alcoólica, os remédios barbitúricos, criados a partir de 1903, deprimem o sistema nervoso. No entanto, se o cérebro passa a trabalhar em marcha lenta, o fígado fiscal, depois de quebrar as moléculas dessas substâncias, funciona como se tivesse recebido uma injeção de ânimo. Por isso, outros remédios costumam deixar de fazer efeito quando associados ao uso de calmantes — afinal, mal entram na circulação sanguínea, são arrasados pelas células hepáticas. Estas, por sua vez — na trama complexa da mistura de drogas —, são disputadas pelas moléculas de álcool e de barbitúricos, quando ambas chegam na mesma hora ao organismo. Essa briga pode ser fatal para quem engoliu os dois tipos: sem dar conta do recado, o fígado libera a passagem das drogas, que uma vez unidas no cérebro podem provocar a morte. Esse excesso é a overdose, que ao contrário do que muitos imaginam, não é um jeito suave de morrer.

A primeira área do cérebro a entregar o jogo é a que controla a respiração. Resultado: a pessoa morre por asfixia. Pior, graças a um mecanismo de defesa, sempre que falta oxigênio para o organismo, a pessoa fica em estado de alerta. Ou seja, quem morre por ingestão de calmante, em vez de se desligar da vida dormindo, provavelmente fica consciente da enrascada em que se meteu. "Algumas misturas são mais perigosas do que outras", aponta o psiquiatra Marcos da Costa Leite, do Hospital das Clínicas, em São Paulo, que se dedica a casos de alcoolismo. "Existem também vários mitos", adverte. "O álcool não potencializa o efeito da cocaína, por exemplo.” Segundo o médico, o pó branco da família dos estimulantes não costuma ser metabolizado no fígado. "O único perigo é a pessoa alcoolizada perder a noção do que faz e usar mais cocaína do que o tolerável pelo organismo", pondera. 

"Aliás, esse tipo de observação é válido para qualquer mistura de drogas."Normalmente, quando um neurônio libera uma microdose de neurotransmissores, para alcançar os neurônios vizinhos, essas substâncias são reabsorvidas. É justamente essa reabsorção que a cocaína impede, ao ser injetada ou inalada na forma de pó. Ou seja, todas as mensagens que transitam no cérebro, enquanto dura o efeito da droga, ficam reverberando — daí o jeito agitado e confuso do usuário. A linha cruzada de várias informações, depois de certo tempo ou conforme a quantidade da droga no organismo, provoca panes — as convulsões do cérebro, geralmente fatais. Na realidade, as anfetaminas — drogas estimulantes, vendidas em farmácia, mediante autorização médica — podem levar ao mesmo efeito, por um caminho diferente: em vez de as mensagens se repetirem, do ponto de vista químico, elas começam a passar mais depressa.

Os alucinógenos, como o LSD, são drogas peculiares, porque não costumam matar quem as consome. As moléculas de LSD enviam mensagens falsas, especialmente na área do cérebro que se encarrega de compreender aquilo que os olhos registram. Com isso, durante a viagem da substância pelo sistema nervoso, a pessoa passeia por cenários imaginários. "Existem teorias de que a droga danifica os neurônios, mas não estão muito claras", conta o psiquiatra Leite. A maconha, outra alucinógena, também provoca controvérsias. Das mais de 400 substâncias que a compõem, só uma minoria foi isolada. Daí a dificuldade dos cientistas em afirmar que o chamado THC, um dos seus componentes, é de fato o responsável pelo relaxamento muscular e pela perda de noção de tempo, por exemplo. A maconha provoca ainda a liberação de adrenalina, o hormônio que acelera os batimentos cardíacos. O coração então chega a bater cerca de 160 vezes por minuto, quando o normal seria entre 80 e 100. Só para se ter ideia, durante um orgasmo, o músculo cardíaco pode atingir 180 batidas por minuto. Experiências mostram que ninguém morre de overdose dessa droga, cujos efeitos maléficos seriam os mesmos do cigarro de tabaco — o qual provoca dependência, síndrome de abstinência e uma série de males, como câncer de pulmão, embora não seja comercializado por traficantes nem seus usuários perseguidos pela polícia.


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Capturado online: http://super.abril.com.br/ciencia/uma-viagem-das-drogas-pelo-corpo-humano em 04/01/2016

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